domingo, 1 de abril de 2007

O impacto da globalização nas relações de gênero dentro das famílias

Referência deste trabalho: Schreiner, Gabriela (2006). O impacto da globalização nas relações de gênero dentro das famílias. Monografia apresentada no Seminario Virtual PRIGEPP: “Globalización y género: dimensiones económicas, políticas, culturales y sociales. Tensiones, reacciones y propuestas emergentes en América Latina”. PRIGEPP/FLACSO, Argentina - versão em português, traduzido do original em espanhol pela autora.

Introdução

Ao pensar a globalização suas conquistas e efeitos podemos evaluá-la com paradigmas incorporados, com expectativas idealistas, positivistas, pessimistas com maiores ou menores protestos. Para muitos e muitas, a globalização parece que é algo que se observa de longe, do qual não se faz parte ou não se toma parte. Para outros ou outras “costuma apresentar-se como o ponto de chegada ao qual ‘idealmente’ deveriam chegar todas as sociedades que se encaminham rumo a um desenvolvimento sustentável”(Bonder, 2006:1)
Para alguns autores e autoras como Rapoport, por exemplo, a globalização não é uma invenção da modernidade, para outros é um fenômeno que nasce no século XX (Kéller-Herzog e Thurow, entre outros). Entre eles/as estão os que a analisam sob a ótica da economia (Harvey), alguns como sinônimo de exploração capitalista (Borón), outros com olhares que incluem o cultural e o processo de construção relacional como Hopenhayn e Bauman. MacGrew nos propõe classificar as visões a respeito da globalização em monocausais e pluricausais, o que sofre críticas por parte de outros autores como, por exemplo, Sklair. Na riqueza de estudos e investigações pode-se constatar um traço comum: complexidade. Compreender a atualidade é um desafio constante e mutante, na velocidade e intensidade dos tempos modernos.
No presente trabalho não aprofundaremos nas razões históricas dos processos de globalização. Daremos preferência a aqueles pontos que influenciam mais intensamente nas relações familiares da atualidade. Faremos uma sucinta passagem pela evolução das famílias em América Latina buscando entrelaçar os marcos da globalização e as diferentes formas de ser família na atualidade, com especial atenção nas influências sobre as relações de gênero em seu interior.

Identidade e pertencimento: onde está o “nós”?

Os Estados em América Latina vivem uma realidade de fragilidade e encolhimento efetivo, em grande parte graças aos processos de privatização que levam a uma limitada capacidade de fazer frente à desigualdade e à pobreza. Bem ou mal orquestrados, ditos processos aliados à redução do gasto destinado às políticas públicas e programas de desenvolvimento social, contribuem para o aumento tanto da pobreza, quanto da parte da responsabilidade que cabe à própria sociedade.
Para Güel e Lechner (2002) os efeitos da globalização são sentidos na governabilidade democrática que é afetada pela interiorização dos processos globais com comprometido poder de analise crítico por parte da sociedade que acaba por “naturalizar” os processos e “interiorizar” como “único caminho” o que é hoje um sistema de forças, decisões e visões pautado por uma lógica de mercado. A ordem coletiva se configura dentro da “naturalização do social” e “uma satisfação oportuna neutraliza a discussão sobre o modelo de desenvolvimento”, subtraindo das capacidades de construção coletiva a oportunidade protagônica de construir a realidade do “Nós”, aportando à subjetividade social uma configuração individual e resignada.
Em um mundo global, onde a urgência aumenta, as distâncias precisam diminuir, digo as distâncias físicas. A informação é, então um bem que deve transitar a velocidades crescentes e gerar conhecimento que se transforma em valor. As telecomunicações, onde a Internet e a televisão por cabo/ satélite, são as principais fontes/ receptoras, ocupam um papel central na sociedade global. A informação e as finanças estão tão globalizadas que não possuem mais limites nem espaços. Vemos a circulação de capital, notícias e saberes quase sem esforços e em magnitudes extraordinárias. O estontear imediato desta realidade se contrapõe à constatação de que não é um fenômeno eqüitativo e mais, que a interdependência do financeiro e do informativo gera vulnerabilidades econômicas e oferece oportunidades de “recriar e pluralizar nossas identidades com os sinais que outros nos enviam à distância”. Somos constantemente convidados a ver o mundo e a nós mesmos com outros olhos.
Nos interligamos rapidamente e instantaneamente estamos aqui e ali. Os contatos e as relações proporcionados pelas modernas tecnologias se constituem sob um novo paradoxo onde não existem distâncias e o vínculo entre um e outro se constrói até profundo mesmo que na não-presença. A volatilidade não é uma prerrogativa do capital: as opiniões e pontos de vistas viajam pelas comunicações que produzem diálogos entre as diferentes zonas do planeta colocando em conflito valores, culturas e “sentires” levando ao que Hopenhayn chama de uma “perda de memória histórica”. E a desigualdade segue obedecendo a uma regra direta de crescimento com o crescer da sociedade global. Em contrapartida, a gama infinita de possibilidades de ver ao “outro na progressiva permeabilidade entre cultura e sensibilidades diferentes”, oferece oportunidade inéditas de, mais que exercícios de tolerância, “auto-recriação própria na interação com esse outro”. Sem querer uma leitura ingênua desta possibilidade, “entrar nesse olhar do outro”, permite mais que a aceitação é um caminho rumo à re-configuração do um a partir do exercício de ver-se sob a perspectiva do outro. (Hopenhayn, 1999)
Vivemos em uma realidade fluída, fragmentada, com fragilidade ou até desaparecimento das instituições tradicionais e conhecidas de pertencimento e referência, “em definitivo a perda dos marcos integradores do sentido e da identidade” (Bonder, 2006) e ao mesmo tempo, com novas formas de ver e viver a realidade, com certas tradições e ideologias que a configuram. Tudo isto influencia as subjetividades e faz possível uma “recombinação” de percepções e sentidos.
No desígnio das TICs o real e o virtual pedem novas configurações. Por um lado a Internet encurta distâncias, por outro, oferece possibilidades de relações íntimas entre seres que nunca se viram. Por elas, imagens e informações difundidas são em sua maioria, mensagem alheios, com outras caras e culturas às quais, sem grande poder de escolha, são absorvidas, uniformizando sentidos e definições. A sensação de protagonismo que a Internet oferece pela poder de difundir uma mensagem para muitos com um esforço irrisório, está ao alcance de poucos, amplificando as vozes das minorias favorecidas. Apesar deste privilégio, aqueles experimentam uma sensação de impotência ou anonimato frente à imensidão de informação e à limitada capacidade de administração/ absorção.(Hopenhayn, 1999:1)
Na crescente e constante mobilização de pessoas entre diferentes países, as TICs desempenham um papel de aproximação e conexão importante. Para as famílias separadas pela distância física, a Internet oferece contatos em tempo real que não seriam possíveis décadas atrás. Uma vídeo-conferência serve tanto para uma reunião de negócios, quanto para um encontro familiar. O fato é que pessoas em diferentes pontos do planeta podem enganar a distância e o fuso horário marcando encontros virtuais, dando novas dimensões às identidades: que valores dão sentido de pertencimento a pessoas em lugares tão distantes, em culturas tão diferentes?
Segundo Albeto Menucci, citado por Bonder (2006) “a identidade se transformou em um problema na sociedade globalizada” e isto ele atribui ao fato de que impede que “os sujeitos possam acumular automaticamente respostas existenciais” fruto da crescente diferenciação que impede a possibilidade de replicar um modelo de ação sem que sofra adaptações; a alta densidade e volatilidade da informação à qual somos expostos e que nos paralisa e impede a assimilação de experiências e por último, à “sobre-saturação das possibilidades que nos oferece o mercado de bens de capital e simbólicos”. Sendo assim, a incerteza que passa a ser parte constitutiva e “permanente de nossa experiência” e “a experiência de perdas”, mais freqüente e presente na vida moderna, geram uma tendência de buscar guarida em “um núcleo forte ou essencial para a identidade” (Bonder, 2006: 8.1) Aqui o grupo familiar é um alicerce, mas não só: cada vez mais tomam conta desse espaço tanto grupos religiosos, fanatismos esportivos, quanto “gangs” e o narcotráfico, fenômeno crescente nas principais cidades Latino Americanas.
São tempos, segundo Tomás Abraham, onde a “cultura econômica” se transforma em um “capital simbólico, na linguagem com o qual ‘gerenciar’nossas vidas e dar nome à realidade” e, ao mesmo tempo e como contrapartida, em uma “sociedade terapêutica” em busca de amparo frente às crises que afronta a construção do autoconceito como auto-regulação, ‘antes que as instituições o façam’. Aliada à crise de credibilidade por que passam as instituições políticas ou públicas, esta situação oferece um cenário fértil para a retração e desconfiança da sociedade. (Bonder, 2006:6.5)
Vivemos em um momento de “crise nos âmbitos de preferência e referência” com conseqüências subjetivas e sociais vivenciadas pelas experiências de desamparo, vulnerabilidade e isolamento. O medo se converte em um “poderoso dispositivo disciplinador”.(Bonder, 2006: 8.1)
Auto-regulação pela perspectiva de um “controle externo”, dificuldade de pensar e construir um “nós”, desconfiança nas instituições e baixa auto-estima coletiva, corroem o capital social e fragilizam as alternativas de suporte dentro das sociedades.

As Famílias

A família, como unidade básica da sociedade é fonte de pesquisas por diferentes óticas e visões. Segundo Irmã Arriagada (2002) existem três grandes pontos que dificultam as análises sobre a “família”: o saber empírico, os paradigmas generalizados e o enfoque – ou a falta de – histórico. (CEPAL, 2002:144) Ao falar de “família” facilmente se desconsidera o exterior, o público que interfere no privado, o processo histórico seja no contexto onde se encontra ou o processo próprio e particular de evolução histórica (ciclo) da família. Ainda mais, se fala de “família” como se houvesse uma única. Cada família é única, mesmo possuindo infinitos olhares e perspectivas, é dona de uma combinação única destas possibilidades.
Uma “única família” não é suficiente para representar “todas as famílias”, então, falaremos de “famílias” no contexto geral para América Latina ou para determinado país e de “família” quando a perspectiva seja de seus membros ou de um deles.
Por saber acadêmico ou empírico, as famílias são reconhecidas tanto como fonte de suporte emocional, econômico, cultural e social, quando como fator de exclusão e vulnerabilidade. É esta dualidade, com variantes romanceadas, que pode levar a ver as “outras famílias” como vulneráveis e facilmente emitir opiniões ou preconceitos. Para além do conceito ideológico, não existe uma família modelo ou o modelo ideal de família.
Tanto como suporte para seus membros quanto como fator de vulnerabilidade, as famílias são parte/fim de discursos e políticas de governos e vivem em constante evolução.

As famílias em Latino América na atualidade - dados

Segundo a conclusão de Bauman (2004), a seriedade neste mundo é dada pelos números. De certa forma, os dados que se seguem expressam, de forma quantitativa e sucinta, um panorama das famílias em América Latina e Caribe que é pertinente neste trabalho.
Do total de lares 61,9 % são famílias nucleares, 53,1 % com filhos, sendo que apenas 42,8% são famílias bi-parentais e 9,8 % monoparentais chefiadas por mulheres (37,3 % das que residem em zonas urbanas são pobres ou indigentes, sendo estas últimas 16,6 %). Em 47,6 % das famílias nucleares com filhos, ambos pais trabalham. 30,1 % das famílias latino americanas e caribenhas estão gerando filhos (a taxa de fecundidade é de 2,5), 11,7 % se encontram na etapa inicial (26,4 % são pobres e 13 % vivem na indigência – zonas urbanas). 36% das famílias se encontram em etapa de consolidação com filhos na adolescência ou em início de juventude. Entre aquelas que residem em zona urbana, 41,9 % são pobres ou indigentes, sendo que a indigência está presente em 16,1 % destas famílias. Atualmente, 66,1 % das famílias na região estão criando crianças ou adolescentes. Segundo dados da CEPAL de 2002, em uma pesquisa em lares de 18 países de América Latina e Caribe, 44 % da população da região é pobre - 221,4 milhões e 19,4 % indigentes - 97,4 milhões, realidade que piora nas zonas rurais, onde a pobreza chega a 61,8 % e a indigência a 37,9 %. América Latina e Caribe é uma região castigada pela desigualdade, 10 % da população vive com menos de 1 U$ diário e 20 % dos lares com renda mais alta detêm 59 % de toda a renda, enquanto que a 40 % dos lares de menor renda lhe corresponde 10 %.(CEPAL, 2005)
No papel de mães, as mulheres de América Latina e Caribe, ainda não recebem cobertura completa dos apoios necessários para a garantia de direitos pessoais e de seus filhos e filhas: 13 % não têm cobertura de atendimento pré-natal ou são atendidas por pessoal qualificado e o fato de não encontrar dados atualizados da mortalidade de mulheres no momento do parto é preocupante. O casamento prematuro é uma realidade expressiva: 25 % das mulheres Latino Americanas e Caribenhas se casam antes dos 18 anos. Estes indicadores são globais na totalidade do território e dos países que dispõem destes dados, o que pode significar piora conforme avançamos para as zonas rurais ou dependendo do país em questão. (UNICEF, 2005)

A evolução das famílias em Latino América

A saída das famílias das zonas rurais para compor as zonas urbanas ofereceu mudanças não só nos processos de produção, mas também da formação, composição e disposição familiar(A famílias das zonas rurais também enfrentam mudanças fruto dos tempos modernos. O trabalho no campo se moderniza e “industrializa” em busca de produtividade e eficiência. As grandes propriedades e as culturas mecanizadas “expulsam” e provocam êxodos e migrações.) As “metas familiares”, antes voltadas para o uso fruto da terra passam a enfrentar o desafio das experiências individuais de seus membros. O mercado de trabalho em indústrias ou serviços onde diferentes membros das famílias vivem oportunidades pessoais faz com que as famílias vivam hoje mais mediando metas e projetos pessoais do que possuam um “projeto familiar”.
Uma das mudanças centrais da modernização “reside no espaço de eleição pessoal, a vontade, a liberdade e a responsabilidade de cada pessoa têm vencido na definição do seu próprio destino”. (Jelin,1998: 21) Junto com as democracias dos Estados pós-ditaduras, se intensificam a cada dia a defesa da diversidade. A “vocação democrática” que nos fala Arriagada (2002) se baseia na aceitação dos direitos individuais e coletivos, considerar a igualdade na diferença e na tolerância. Leis de proteção, defesa e/ou garantia dos direitos de mulheres, crianças e adolescentes, assim como aquelas que normalizam os espaços privados – lei de divórcio, códigos de família, entre outros, são resultados deste contexto.
Como base histórico-estrutural das famílias em Latino América, a “família patriarcal” pressupõe ao pai dono do comando e hierarquicamente superior à mulher que, como esposa e mãe, tem como tarefa a responsabilidade de atendê-lo por completo. Sendo assim, é o homem quem demanda das relações sexuais e de afeto e comanda o espaço doméstico tendo a última palavra sobre a educação, o presente e o futuro de seus filhos e filhas. (Jelin, 1998:26) A conjugalidade, como acordo com componentes explícitos e tácitos, regidos por simbologias pessoais e sociais, responde a expectativas individuais e coletivas. Para Fernández (1994), o contrato conjugal para as famílias de classe média urbana, costuma considerar-se “como um acordo entre duas pessoas de diferente sexo que, livre e reciprocamente, se escolhem em um pacto de amor... na tentativa de desenvolver um projeto de vida comum que implica geralmente criar e amar a sua descendência”. A autora discursa sobre os critérios a partir dos quais se organiza o visível desde acordo e, conseqüentemente, o invisível. Mas o que foi invisibilizado considera os processos econômicos, sociais e subjetivos que fazem possível a concretização do acordo que, ainda hoje é realizado entre partes com graus de autonomia diferentes resultando em uma “relação ‘política’ desigual”. (Fernández, 1994:2)
Dentro das famílias, em especial com estrutura patriarcal, o espaço privado “sentimentalizado”, reservado à mulher junto com a “invisibilidade de sua produção econômica”, é o terreno onde é “gerada a apropriação de seus ‘bens’ eróticos”. “Desta maneira no privado são criadas tantos as condições objetivas e subjetivas para sua circulação desigual no mundo público como as condições para uma tensão conflitiva entre espaços de certo poder e espaços de subordinação feminina”.(Fernández, 1994:3)
O lugar da mulher e, conseqüentemente do homem, no que tange ao poder, hierarquia e autonomia, recebem influencias da modernidade.
Em um processo cíclico de evolução, as famílias têm mudado e influenciado na construção de uma realidade de consideração do indivíduo, mesmo que nem sempre isto seja traduzido em respeito às diferenças ou inclusão do outro como parte, é um elemento mediador das relações familiares. Ainda assim este processo não derrogou as influências e cobranças sociais e culturais sobre os indivíduos, introduziu, não exclusivamente, mudanças de normativas sociais que vão desde a escolha do parceiro/a (o amor romântico x o casamento arranjado e por interesse familiar) até a quebra do patriarcado como “modelo”.
Como organização social e parte de uma estrutura social, a família é um espaço de conflitos, lutas e alianças, onde interesses coletivos e grupais se antepõem a interesses individuais. “Os princípios básicos de organização interna seguem, enquanto família, a diferenciações de acordo com idade, gênero e parentesco. Estas diferenciações marcam tanto a divisão intrafamiliar do trabalho como a distribuição e o consumo, além de reger as responsabilidades de cada um dos membros em relação ao grupo”. (Jelin, 1998: 26)

Do privado ao público, do público ao privado

Elizabeth Jelin nos fala de uma “crise do paradigma desenvolvimentista” e nos incita a pensar a unidade familiar por uma ótica inter-relacional aonde as mudanças nos processos de produção e reprodução vão além de compreender as dinâmicas das famílias urbanas e rurais de ontem e de hoje: A percepção da interconexão nestes processos econômicos e sociais e como se articulam dentro das famílias e interferem (e recebem interferência) da “satisfação das necessidades de consumo”. O binômio público-privado passa por reformulação sob o impacto da discussão e o debate feminista, com mudanças simbólicas e de “estabelecimento da divisão sexual do trabalho” e conseqüentemente nos “âmbitos de poder” que influenciam e são influenciados pelas “transformações na organização doméstica” e as “reestruturações dos laços de convivência e das obrigações fundadas pelo parentesco”. (Jelin, 1994: 2)
O aumento da pobreza e a conseqüente vulnerabilidade expõem as famílias à maior intervenção de políticas públicas estatais. Güel e Lechner nos falam do papel protagônico dos consensos dentro de uma “democracia dos acordos” onde a “governabilidade é entendida como sustentabilidade sistêmica ou organizacional da democracia”. Que acordos implícitos ou explícitos entre Estado, família e sociedade dão pautas de funcionamento e aportam para a construção das subjetividades e valores da sociedade? Esta pergunta fará eco em um desafio de desenvolvimento e aprofundamento em pesquisas futuras. (Güell-Lechner, 2002)

O consumo, a urbanização e o desejo

Somos todos consumidores de realidades e sonhos. Para Bauman, vivemos em uma sociedade de “desejos” e um “desejo jamais sobrevive a sua satisfação”. Assim são criadas e mantidas as relações. No momento onde existem tantas possibilidades de socializar informação, por essa razão, existe mais esquecimentos que aprendizado. (Bauman, 1999:2)
Como parte e conseqüência da sociedade de consumo vivemos a inversão da “relação tradicional entre necessidade e satisfação: promessa e esperança de satisfação precedem a necessidade que há de se satisfazer, e sempre será mais intensa e sedutora que as necessidades persistentes”. Só conta a temporalidade em todos os compromissos que é mais importante que o próprio compromisso, ao qual no lhe é permitido que dure mais que o tempo necessário para consumir o desejo. (Bauman, 1999: 3)
O compromisso parece ter ficado para trás, junto com as épocas de “produção”, assim como o emprego que, na modernidade, passa a ser mais um desejo de difícil obtenção. O sonho do emprego vai além das possibilidades de subsistência ou de consumo, um emprego gera segurança. Em tempos tão voláteis, um emprego formal parece ocupar um lugar ampliado de “suporte”, mais que de subsistência. Para isso é necessário tanto formação como o manter-se “atualizado” e com capacidade de “empregabilidade” o que é um desafio constante. Bauman (2004) aponta o declínio das capacidades e das demandas que caem em desuso antes que cheguem a ser dominadas, assim como os diplomas e a necessidade de ser “flexível” em uma combinação de “fluidez, fragilidade e transitoriedade em construção”.
O emprego, o trabalho como forma de subsistência e proteção, é uma realidade cada vez menos freqüente na região. As políticas econômicas das últimas décadas, baseadas nas diretrizes dos órgãos internacionais, em especial das instituições financeiras, vêm reduzindo os níveis de emprego, aprofundando a desigualdade e a pobreza. Entre muitos dos efeitos nefastos estão a “erosão dos direitos adquiridos nas áreas de segurança de emprego e previdência social... especialmente para as mulheres trabalhadoras”. (Bonder, 2006: 6.3)
Conforme o relatório de Instraw, “as tarefas de sobrevivência que não têm reconhecido seu valor econômico nem sua utilidade social” aliadas à “erosão do papel do homem como provedor econômico” que o leva em muitos casos ao abandono do lar, têm contribuído para que as mulheres, como únicas e últimas responsáveis pelas famílias estejam assumindo a chefia dos lares. (Ramírez, 2005)

Um “chamado do primeiro mundo”?

A falta de oportunidades, a pobreza e a exclusão em certos países em contraposição com os sonhos ou oferta de possibilidades em outros, acaba por levar famílias latino americanas a encontrar na migração, formas de sobrevivência. Em busca das promessas dos países desenvolvidos ou com oferta de emprego, homens e mulheres lançam-se e mudam de país deixando famílias inteiras em seus países de origem. Esta é uma realidade crescente para mulheres, na grande maioria, únicas responsáveis pelos seus lares que, vivendo em situação de pobreza ,se expõem, muito em função da clandestinidade, a situações de vulnerabilidade extrema. (Castellanos, 2005:44) Para Instraw citando diferentes autores, a feminização das migrações não tem exclusiva justificativa na realidade dos países de origem, mas influi um forte componente dos países de chegada com oferta de emprego em tarefas que os residentes não desejam realizar, são serviços para mão de obra barata. (Ramírez, 2005:9)
As redes sociais de certas famílias nos países de destino ocupam um duplo papel de recrutar e apoiar às migrantes. De acordo com Jelin, este tipo de modalidade foi freqüente entre os anos 30 e 40 e agora serve de suporte à onda atual de migração. Nos países de destino, o crescente mercado de trabalho para as mulheres locais sem redistribuição das tarefas de cuidado e educação da prole, gera a necessidade de que um terceiro, nestes casos ainda uma terceira, assuma o trabalho “reprodutivo” nos lares. Sendo assim, mulheres migrantes de países menos favorecidos, chegam para cuidar dos filhos e filhas das famílias locais, tarefa pela qual não eram pagas em seus países de origem.
Castellanos em seu informe elaborado para CEPAL em 2005 fala de dois fenômenos emblemáticos, um na região de Centro América que leva mulheres nicaragüenses à Costa Rica e outro na região Andina que leva mulheres peruanas a trabalho em lares chilenos. Em ambos casos, mesmo com características próprias, a migração separa mães de filhos ou filhas que permanecem nos países de origem aos cuidado de parentes, de filhos e filhas maiores ou de terceiros. Segundo aponta Castellanos, 72 % das mulheres nicaragüenses que migra para Costa Rica têm filhos, assim como 85 % das peruanas que migram para o Chile, mas é possível que estes dados cheguem a ser próximo da totalidade de mulheres no caso das nicaragüenses, pois se desconhecem informações de 27 % das empregadas domésticas.
Ou seja, para realizar as tarefas reprodutivas em casa de terceiros, a mulher migrante deixa sua própria prole aos cuidados de terceiros aos quais remete grande parte do que ganha.
Segundo nos mostra o trabalho realizado por Instraw (2005), “a nível mundial as remessas têm se convertido na segunda fonte de financiamento externo dos países em desenvolvimento”. Sendo assim, é importante que se analise o fenômeno da migração de mulheres em Latino América considerando pelo menos quatro dimensões: a da mulher migrante, a dos empregadores e empregadoras, a dos países de origem – como receptores das remessas que contribuem para o desenvolvimento local – e por último, porém não menos importante, a da família de origem, em especial das crianças e adolescentes que perdem a oportunidade de cuidado e convívio com suas mães. Assim será possível ver com maior amplitude quem ganha e o que ganha e quem perde e o que perde com este fenômeno.

Novas configurações familiares

O aumento da expectativa de vida com um conseqüente aumento do tempo possível para os matrimônios, o aumento progressivo de casamentos que terminam em divórcio, os lares com chefia feminina ou onde a mulher é a pessoa de referência, as novas uniões que muitas vezes fazem conviver na mesma casa proles de uniões diferentes e filhos e filhas em comum, o aumento do número de idosos e o de mulheres nas forças de trabalho, são realidades que crescem em América Latina, e que oferecem possibilidades, alternativas ou não, de re-acomodação de papeis dentro das famílias.
As leis de divórcio e de união estável (Norma brasileira que garante ao companheiro ou companheira dos mesmos direitos e deveres que um marido ou esposa, depois de 3 anos de comprovada vida em comum com uma mulher ou homem)dão legitimidade a novas formas de deixar de ser ou ser casal, mesmo que ainda não se fale seriamente de regulamentar um casal do mesmo sexo. A fertilização assistida e a adoção de crianças e adolescentes por pessoas solteiras oferecem outras alternativas para ser mãe ou pai. Os novos casamentos permitem que uma mesma criança tenha irmãos, meio irmãos e não irmãos, ensaiando relações fraternas sob o mesmo teto.
Arriagada (2002) destaca ainda o progresso social que potencializa as capacidades dos indivíduos – que se contrapões à importância dada à família, e o momento de “reflexividade” que leva as sociedades a revisar seus padrões e normas à luz da circulação de informação e conhecimento. As “imposições religiosas” vêm perdendo terreno para a ética individual, em especial no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos.
Por outro lado surgem novos desafios. A violência aumenta, não tanto em quantidade, mas em exposição, declaração e denúncia, ponto vital para que se possa enfrentar. A violência de gênero vem ganhando gradativamente mais espaços de acolhimento para ambas partes – vítima e algoz – o que a transforma em algo “do qual até se pode falar”. A violência social, grupal e urbana, cresce e se transforma com novos componentes e dimensões.

Conclusões: entrelaçando os fios de uma teia complexa

Em um tempo onde “a globalização afeta as categorias básicas de nossa percepção da realidade e a reinventa sob condições de aceleração exponencial” (Hopenhayn, 1999) , a perda de referências e a formação de novos referentes se transformam em algo certo e constante.
Em um mundo de consumo, urgência, “imediatismo” e volatilidade das relações na sociedade, o compromisso para com os/as outros/as da família se desenvolve sob o signo do desenlace passivo da dissolução de identidades perduráveis. O medo, a incerteza e a necessidade de multiplicar-nos e transformar-nos constantemente geram crises nos âmbitos de pertencimento e referência, o que gera uma experiência de desamparo e vulnerabilidade.
Por outro lado, como diz Hopenhayn “hoje mais que nunca existem condições subjetivas e objetivas de afirmar a diferença” em um terreno que permite oportunidades de exercitar a empatia e enfrentar a negação originária da “cultura do outro”. A dialética da configuração de papéis de homens e mulheres na conjugalidade e parentalidade, tem oportunidade de construir bases a caminho da igualdade nas relações de gênero dentro das famílias.
Há mudanças também na ocupação dos espaços públicos, As mulheres ampliam sua participação em tomas de decisão que geram impacto, na liderança de comunidades, ocupando cargos públicos que vão desde organizações civis a prefeituras e presidências. O mercado de trabalho cada vez absorve mais mulheres em lugares não tradicionalmente femininos. Aqui cabe uma observação: apesar de parecer que as mulheres conquistaram níveis de oportunidades semelhantes aos dos homens, esta relação é muito mais uma questão de repertório que de justiça. É longo ainda o caminho rumo à eqüidade.
A promoção da liberdade social e individual vem permitindo ampliar a discussão e garantia de direitos individuais, aqui destacando os direitos das mulheres, das crianças e adolescentes e o enfrentamento do poder patriarcal com construção de novas identidades. Novas sociedades são geradas a partir de processos de aculturação decorrente das ondas migratórias.
O aumento do número de famílias com chefia feminina e de famílias cuja pessoa de referência é uma mulher, leva à formação de redes bemininas de solidariedade. Também crescem as famílias de novas uniões e os grupos familiares com 3 gerações sob o mesmo teto.
Sem sombra de dúvidas, os processos de modernização têm aportado novas configurações objetivas nas relações intrafamiliares. As relações de poder na conjugalidade e determinadas mudanças de responsabilidades nas tarefas produtivas e reprodutivas, entre outros, interferem na divisão do tempo e a configuração dos papéis de homens e mulheres. A modernidade tem produzido impactos nas relações de gênero desencadeando um processo de re-configuração de visões, papéis e responsabilidades. Se por um lado a velocidade da informação corrobora com a dissolução de identidades perduráveis, por outro, é fonte de desenvolvimento e formação de novas formas de ser e ver. O desafio será aumentar e democratizar seu alcance para ampliar o desenvolvimento da capacidade de discernir, a auto-estima e a liderança positiva, que podem libertar dando poder eqüitativo de escolha às mulheres, aos homens e suas famílias.
Por fim, em uma sociedade desigual, desconectada, volátil, mutante, onde cada vez mais é a comunidade a dar resposta à pobreza, a identidade social e coletiva, o capital social e o desenvolvimento da solidariedade ocupam um papel primordial na construção de uma sociedade includente. Um dos desafios da modernidade reside na promoção das capacidades de construir um “nós” que dê conta de entrelaçar um tecido social congruente capaz de respeitar as diferenças, fazendo frente à desigualdade, tanto no público, quanto no privado.

Bibliografía

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Referência deste trabalho: Schreiner, Gabriela (2006). O impacto da globalização nas relações de gênero dentro das famílias. Monografia apresentada no Seminario Virtual PRIGEPP: “Globalización y género: dimensiones económicas, políticas, culturales y sociales. Tensiones, reacciones y propuestas emergentes en América Latina”. PRIGEPP/FLACSO, Argentina - versão em português, traduzido do original em espanhol pela autora.

terça-feira, 13 de março de 2007

Violência de gênero nas famílias

Aparentemente crescente muitas vezes considerada um fenômeno da modernidade, a violência doméstica deixa de ser um tema exclusivo do mundo privado e se transforma em um assunto público onde cabe ação e intervenção pública. Será a violência doméstica que cresceu ou o número de “notificações” e acessos a serviços de atenção no tema?
“Notificar” tem como origem a mesma raiz de “notar”, “perceber” e para perceber é necessário conhecer, saber, ver. Muito por velhos e enraizados paradigmas mas também por desconhecimento, a violência doméstica têm sido durante séculos algo comum, aceito e oculto dentro dos muros que cercam o ambiente privado das famílias.
Nas últimas décadas, em parte fruto da provocação de movimentos feministas e de direitos humanos, estudos nas áreas de saúde, economia, além das ciências sociais, têm contribuído com conclusões científicas à percepção de sua existência e à necessidade de combater a violência intrafamiliar e evitar suas conseqüências nefastas para o desenvolvimento humano e social. Não é o “fenômeno” que cresce e sim seu reconhecimento.

Violência intrafamiliar

Violência: “ação ou efeito de violentar, de empregar força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra (alguém); ato violento, crueldade, força”.
Houaiss

Definir a violência não é tão fácil como o demonstra o dicionário. De acordo com Padilla (2006) diversos autores estão de acordo em definir a violência nas relações interpessoais como “o exercício do poder mediante o uso da força – seja física, sexual, verbal, emocional, econômica ou política – que afeta de forma negativa a integridade física ou psicológica de outra pessoa”. (Padilla, 2006:15).
Para efeito deste artigo, consideramos a definição de Corsi (2006) sobre violência familiar ou violência intrafamiliar: “todas as formas de abuso de poder que se desenvolvem no contexto das relações familiares e que ocasionam diversos níveis de dano às vítimas desses abusos”. Isto não delimita como área de ocorrência o espaço físico do lar.
Corsi faz uma importante diferenciação entre violência doméstica e familiar delimitando a primeira às relações de gênero nos espaços domésticos, podendo ser associada às relações com parceiros com ou sem convivência, com ex-parceiros ou relação de namoro e a segunda às relações familiares que incluem também a violência entre gerações. (Corsi, 2006:18).
As principias vítimas de violência intrafamiliar são as mulheres, as crianças, meninas e meninos e os adultos maiores.
Em 2005 o Instituto Salvadorenho de Desarrollo de la Mujer (ISDEMU) apresentou os resultados de um trabalho de atenção integral e confidencial a pessoas vítimas de violência, por meio do Programa de Saneamento da Relação Familiar (PSRF). Os resultados referem-se do segundo semestre de 2004 ao primeiro de 2005 e correspondem a um total de denúncias por violência intrafamiliar, maltrato contra a infância, agressão sexual e orientação. Do total de denúncias 54.26% são de violência intrafamiliar, onde 93.23% correspondem a mulheres e 6.77% a homens. 32.59% do total de denúncias corresponde a maus tratos contra crianças e adolescentes e 7,98 % a agressão sexual.
Nos casos de maltrato à infância, os principais agressores são as mães e pais: no caso de meninas, 39 % das denúncias apontaram como agressoras suas mães e 34 % a seus pais. No caso de meninos, 44 % dos maus-tratos tiveram origem em suas mães e 40 % em seus pais. Estes dados são inquietantes em especial dentro de um universo equivalente em quantidade de denúncias por parte de meninas e meninos (1.03:1). No caso dos meninos, 84 % dos maus-tratos têm como origem seus progenitores, no entanto para as meninas este percentual é menor: 73 %. No caso das meninas existe a presença de um agressor adicional: companheiro, ex-companheiro ou namorado que são responsáveis por 8 % do total de denúncias. Aqui temos duas realidades importantes: as uniões precoces e a perpetuidade das relações de submissão das mulheres em relação aos seus companheiros que expõem meninas à violência destes desde muito cedo.

Nota: No estudo do ISDEMU a incidência de violência em meninas e meninos trabalhadoras/es domésticas/os é irrelevante. Sabe-se que a realidade em América latina não é exatamente esta, o que pede urgência em uma investigação mais profunda, que amplie a visibilidade e permita o enfrentamento do problema.

Na violência de gênero dentro das famílias, a mesma pesquisa oferece dados interessantes. Os principais agressores das mulheres são esposos, companheiros ou ex-companheiros (78 % das agressões onde as mulheres foram as denunciantes). Quando os denunciantes são os homens, apesar de suas companheiras serem ainda a maioria das agressoras (58%) aparece outros agentes vitimarios como pais e filhos(as) que somam 18 %.
Para este artigo é fundamental salientar que nos resultados apontados pelo ISDEMU, 80,04% do total de denúncias correspondem a mulheres e 19,96% a homens. Equivale a dizer em números relativos que, para cada denúncia efetuadas por um homem, existem 14 concretizadas por mulheres. É lógico que nos perguntemos se esta é a expressão da realidade, não só no universo atendido e pesquisado por ISDEMU em El Salvador, mas em toda América Latina. Muitas variáveis das quais não se conseguem dados em diferentes pesquisas, em quantidade e qualidade suficientes, poderiam mostrar outros resultados. Não todas as situações de violência são registradas. Homens vítimas de violência por parte de mulheres têm resistência em procurar algum serviço oficial, fruto da mesma cultura que gera a violência em relação à mulher. Outras variáveis oferecem uma multiplicidade de realidades: o contexto sócio-cultural, classe social, educação, idade, etnia, religião e sistema de crenças, entre outras, influenciam nas formas como se desenvolve a violência dentro das famílias, em como é percebida ou não e nas estratégias para enfrentá-la. Além disso, não todos os países ou localidades oferecem serviços de atenção, de registro e reunião de dados em condições de promover pesquisas que entrelacem variáveis a ponto de oferecer uma visão mais realista de cada situação. De acordo com dados da UNICEF(2006), desde 1995, só 38 países do mundo realizaram pelo menos um estudo sobre a violência contra mulheres. Outros 30 países elaboraram estudos que englobam pelo menos parte do país. (UNICEF, 2006:83)

Violência doméstica e desigualdade de gênero dentro das famílias

Mesmo existindo dados relevantes sobre a violência praticada pelas mães para com filhas e filhos e de filhos e filhas para com as/os adultas/os responsáveis, neste artigo nos concentraremos na violência de gênero vivida no casal e suas repercussões no ambiente familiar e público, inclusive a que envolve meninas e seus companheiros ou noivos.
Podemos definir a violência de gênero segundo Padilla (2006) “como todos os atos de agressão física, sexual e emocional, que se desenvolvem em um contexto de desequilíbrio de poder baseado na forma como se constroem os gêneros em nossa sociedade, por meio dos quais quem detêm maior poder busca persuadir a vontade do outro ou outra para manter o exercício desse poder quando encontra resistência”. (Padilla, 2006:17) Para Corsi (2006) falar de violência de gênero é falar de “todas as formas por meio das quais se busca perpetuar o sistema de hierarquias imposto pela cultura patriarcal”. (Corsi, 2006:17)
Cabe salientar que as práticas de homens e mulheres seguindo normas e valores a partir da cultura patriarcal “faz com que não seja necessário ser homem para ser machista, porque o machismo não é um atributo pessoal mas sim uma forma de se relacionar”. De fato encontrarmos lares com total ausência de homens que se organizam sob o signo do machismo. (Padilla, 2006:18)
Assim, a violência de gênero não se restringe à violência do homem para com a mulher – mesmo que esta seja a mais freqüente. É melhor, toda forma de violência praticada nas relações de gênero e que considera também a violência a partir da mulher para com o homem, entre mulheres ou entre homens.
Mesmo que não sejam os únicos (existem poucas pesquisas sobre a violência de mulheres para com homens), são os homens que praticam em maior proporção a violência em relação à sua parceira. A violência contra a mulher não é prerrogativa dos espaços privados e íntimos das relações familiares, mas será neste âmbito que concentraremos nossa atenção, incluindo as vividas em relações de afeto entre namorados e com ex-companheiros/as.
Em pleno século XXI, mesmo com os avanços na defesa de direitos da pessoa humana, a modernidade que contribui com facilidades no processo de individuação, o colocar do tema nas agendas públicas por movimentos feministas e de mulheres e os avanços conquistados (leis, serviços, pesquisas, etc.), ainda vivemos em um sistema andro-centrico que considera a mulher em uma posição de subordinação e submissão em relação ao homem e que tem suporte em modelos cristalizados culturalmente construídos e transmitidos com a ajuda de diferentes frentes (meios de comunicação, escola, religião, etc.), que junto com as famílias perpetuam a desigualdade. Corsi afirma que, mesmo com os esforços para promover novas formas de ser mais igualitárias, um vasto sistema de crenças, sustentado por amplos setores da população, suporta “a noção de que um homem tem o direito e a obrigação de impor medidas disciplinarias para controlar o comportamento daqueles que estão sob sua responsabilidade”. (Corsi, 2006:20)
Dentro das mais persistentes convicções, encontramos:
• “que as mulheres são inferiores aos homens;
• que o homem é o chefe do lar;
• que o homem tem direitos de propriedade sobre a mulher e os filhos; e
• que a privacidade do lar deve ser defendida dos controles externos.” (Corsi, 2006:20)

Do dito ao feito: o popular e o institucional que mantêm a “ordem”

Por toda América Latina, ditos populares contribuem para que se considere a violência do marido/companheiro para com “sua mulher” como algo natural e privado:
“Porque te quiero te aporreo” (Equador)
“Si pega, marido es” (Equador)
“Los trapos sucios se lavan en casa” (Argentina)
“Más me pegas, más me quieres” (Peru)
“Entre marido y mujer, nadie se puede meter”
“Llanto de mujer, engaño es”
“La mujer, el pescao y el marrano se comen con la mano”(Colômbia)
“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” (Brasil).
“É mulher de malandro” – para dizer “que ela gosta de apanhar” (Brasil)
Por outro lado, diante a uma situação de violência doméstica, “os outros” (os de fora) se permitem conclusões que não contribuem para a mudança nem oferecem suporte para a situação específica, e mais, servem como uma “camada de proteção” para a omissão e o descaso: “ela gosta de apanhar, por isso não que ver o seu marido na cadeia”, por exemplo.
Padilla (206) diz que ao conversar com mulheres peruanas que se aproximavam aos Centros de Atenção (CEM – Centros de Emergência Mulher) para pedir assessoria em suas situações de violência de casal, muitas manifestavam não desejar que seus companheiros fossem presos, mas sim que detivessem a violência (Padilla, 2006:12), que modificassem suas formas de relacionar-se. Se os serviços de ajuda oferecem como alternativas únicas ou a prisão de seu companheiro para dar fim à violência ou a aceitação da violência para não perder seu companheiro, não será difícil que estas mulheres optem por permanecer com seu companheiro violento.
Será que os serviços de proteção às mulheres vitimas de violência realmente escutam ao público que atendem? Poderia se justificar, caso a escolha seja por “seu marido”, que essa mulher “não quis ser ajudada”?
Diversos serviços de atenção às mulheres vítimas de violência estão organizados para oferecer proteção e cuidado (em geral junto com seus filhos e filhas) exclusivamente a vitimas: apresentar a denúncia formal frente à justiça dando apoio jurídico e outras ações de empoderamento das mulheres como dar-lhes a conhecer seus direitos, apoio psicológico, entre outras, além de oferecer alternativas de sobrevivência – já que em muitos dos casos o agressor é também o principal provedor do lar. Este “empoderamento” da mulher poderá oferecer elementos que a ajudem a terminar com sua situação de violência, dano-lhe condições de romper com sua relação de dependência com o agressor, muitas vezes mais de ordem econômica que psicológica, tanto a dependência quanto a necessidade de ajuda.
Como conseqüência positiva e de curto prazo, pode-se obter a autonomia econômica da mulher, a saída do agressor do núcleo familiar, o fim da relação de casal e da violência. Mas sabemos bem que a efetiva e definitiva saída do agressor não é uma realidade muito fácil de concretizar.
Como conseqüências a médio e longo prazo, podemos encontrar:
• A construção de uma nova família/ chegada de outro homem, muitas vezes também violento, já que em geral a insuficiência (especificidade, tempo e disponibilidade) dos serviços de saúde mental não oferecem oportunidades para que as mulheres re-configurem novos “modelos de companheiros”;
• Novas situações de violência para as crianças e adolescentes que não são filhas ou filhos do novo companheiro;
• Violência de gênero no novo casal;
• O primeiro companheiro construindo uma nova relação de casal e repetindo o modelo relacional que conhece e não teve oportunidade de re-configurar;
• Deterioração dos vínculos entre pais e filhas e filhos, e
• Referencias “tóxicas” para meninas e meninos, futuras mães e pais.
Por que? Vamos relembrar as solicitações de muitas das mulheres que acessam aos CEMs, mencionadas por Padilla (2006):
Que procuram estas mulheres?
1. Terminar com a situação de violência, e
2. Continuar com seus maridos/companheiros
Não todas as mulheres vítimas de violência desejam continuar com suas relações, mas existe um ponto vital que estamos deixando de lado, que se encontra na solicitação de algumas, se não muitas, destas mulheres e que poderia modificar não só a realidade delas: os homens necessitam modificar seus estilos ao relacionar-se, deixando de lado a violência como saída.
O que acontece com o agressor que é afastado da família pela lei e/ou por sua companheira? Têm a possibilidade de pensar, de re-configurar sua forma de ser ou mesmo chegar a compreendê-la? O que se faz necessário para tal?
Miguel Angel Ramos Padilla em seu livro “Masculinidades y violencia conyugal” conta duas experiências como visitante de oficinas onde participavam homens que praticavam violência contra suas companheiras em diferentes países de América Latina e salienta constatações importantes. Como convidado em uma oficina no Chile se surpreende ao escutar dos homens presentes – enviados a serviço pela justiça em virtude da violência intrafamiliar praticada – quando faziam referências de forma muito carinhosa sobre suas companheiras e filhos e ainda mais ao ver que “todos condenavam a violência contra a mulher”, o que nos convida a pensar que é que pode gerar tanta contradição entre discurso e prática?
Na segunda experiência, em Cidade do México, em um modelo diferente de intervenção que incidia fundamentalmente no aspecto cognitivo (identificação e expressão de emoções para a percepção e desmistificação de crenças machistas), conheceu historias pessoais “carregadas de desejos de controle e poder, as quais estavam misturadas com trajetórias de muito mal estar e dor”. Eram homens que não só praticavam a violência, mas também tinham sido vítimas dela em idade precoce. De fato, uma grande contradição percebida nesta última oficina foi constatar que mesmo com suas experiências infantis dolorosas, entre as quais testemunhar a violência praticada por seus pais contra suas mães, estes homens eram violentos com suas companheiras e mais, que estas práticas lhes gerava muito mal estar. (Padilla, 2006:13)

Família e desigualdade

Para melhor compreender um assunto tão complexo como a violência contra as mulheres nas relações domésticas, é necessário iniciar um percorrido a partir da análise da desigualdade decorrente das relações de gênero nas famílias. Segundo Burin (2004) , gênero é definido como “a rede de crenças, linhas de personalidade, atitudes, valores, condutas e atividades que diferenciam a mulheres e a homens”. A partir deste critério descritivo “é que as formas de pensar, sentir e se comportar de ambos gêneros, além de ter uma base cultural e variável, devem-se a construções sociais e familiares atribuídas de forma diferenciada a mulheres e a homens”. (Burin-Meler, 2004:23). Não é na diferença que se centra o problema, mas na construção baseada em que estas diferenças geram desigualdades e hierarquias entre os gêneros feminino e masculino e conseqüentemente subordinação – dominação.
Estes paradigmas são aprendidos desde o nascimento e é nas famílias que encontram seus primeiro e grande difusor. As famílias são os primeiros laboratórios onde se ensaia o “ser menina” ou “ser menino” para depois desempenhar papéis de mulher e homem no privado e no público. As famílias contribuem para a manutenção ou mudança das subjetividades e recebem a partir da sociedade, expectativas e modelos que vão moldando um sistema de valores e crenças que orientam/ definem um imaginário coletivo.
Assim sendo, as mulheres incorporam um papel de subordinação a partir de suas relações de filhas-irmãs desde muito cedo. De forma complementar, o menino aprende no início seu “lugar” e exercita sua forma de ser “homem” no espaço doméstico para depois ocupá-lo no público.
Mesmo com múltiplas possibilidades de construir uma família em América latina, as relações baseadas em modelos autoritários prevalecem. Nestes casos o abuso de autoridade, em geral edificada na figura do pai ou quem o substitua, determina uma hierarquia familiar que determina valores diferentes às pessoas dentro das famílias e constrói um sistema de relações onde os “mais valiosos” têm “maior poder. Assim não existe democracia na tomada de decisões e as comunicações ocorrem verticalmente: quem tem mais poder manda, as/os outras/os obedecem, um cenário autoritário muito propício para a violência. “Neste tipo de relações familiares, as crianças aprendem que violentar aos mais frágeis é um comportamento normal e que os abusos de poder correspondem à ‘natureza’ humana”. (Zalaquett, 2005)
Meninos e meninas que crescem vivenciando relações autoritárias, onde sua participação é constantemente brecada e muitas vezes de forma violenta, não desenvolvem capacidades de opinar, de tomar iniciativas e não exercitam sua criatividade. Por sua vez, a partir da coletividade muitas práticas violentas são reconhecidas como formas de educação, validadas e compartilhadas em outros espaços de convivência e socialização.
Fruto desta dinâmica de dominação-submissão e menos-valia, os membros “mais frágeis” tendem a justificar a violência de seu opressor “mais forte”e a culpar-se pelas situações vividas. Sem o apoio adequado, os danos emocionais causados pelos maus tratos continuarão e “guiarão estas pessoas a expressar por sua vez o ressentimento, a raiva e o medo contra outras pessoas com menos poder”. (Zalaquett, 2005) Não por acaso e como exemplo, cresce nas escolas das grandes cidades um tipo de violência relacional desde um ou mais alunos/as “fortes” para com um ou mais alunos/as “frágeis”, chamada Bullying.
As relações de desigualdade e hierarquia genérica nas famílias autoritárias se baseiam nos papéis estabelecidos na cultura patriarcal que, mesmo sendo vividas por “indivíduos concretos não começa nem termina neles, mas formam parte de uma cultura hegemônica, à qual consiste em um sistema de valores, atitudes e crenças que sustentam uma ordem estabelecida e os privilégios daqueles que detêm o poder, neste caso os homens”. (Padilla, 2006:18). É uma cultura que ainda favorece a organização e distribuição sexual do trabalho, onde o homem é o que se ocupa das tarefas produtivas, relações sociais e de poder (público) e às mulheres cabem as tarefas do cuidado do lar (privado).
Mesmo com as mudanças nas configurações familiares e a diversidade de possibilidades de ser família – em especial a partir da segunda metade do século passado, onde a saída das mulheres para ocupar espaços no mundo do trabalho entre outras variáveis contribuiu substancialmente – as responsabilidades das tarefas chamadas de reprodutivas, das quais faz parte o cuidado da prole, ainda recaem sobre as mulheres.
A partir da psicanálise, especialmente a parir de Freud, diferentes correntes e especialistas sustentam a importância do papel da mãe no desenvolvimento psicossocial saudável de meninas e meninos. Mas não só a mãe tem um papem fundamental. De acordo com Meler (2004) foi Nancy Chodorow (1978) uma das primeiras a apontar a importância de compartilhar o cuidado entre pais e mães e assinala que a identificação feminina para as meninas se da a partir de um modelo accessível e que para os meninos a identificação masculina se da a partir do discurso materno, dos esporádicos contatos relacionais com progenitores masculinos (modelo: mãe presente – pais ausente no cotidiano do lar) e de mensagens recebidas pelos meios de comunicação (Burin-Meler, 2004: 279) ao que mais adiante se somarão referencias dos grupos sociais mais amplos (escola, grupos de pares, etc.). Neste modelo pode se constatar uma fragilidade no processo de identificação do menino – denominado “posicional” – em relação à constituição da identificação das meninas – denominada “relacional” – que decorre do convívio cotidiano e da maior possibilidade de acesso ao capital humano das mães (Burin-Meler, 2004:279). Ancorada na presença – oportunidade de acesso – materna ou na ausência paterna, meninos e meninas vão construindo suas masculinidades e feminilidades.
Vivendo em famílias autoritárias e violentas, onde as diferenças entre gêneros marcam acentuadas desigualdades, às meninas são ensinadas a fragilidade, a submissão e a servidão. Vendo suas mães ocuparem esses papéis, crescem desenvolvendo sua “sensibilidade” como sinônimo de fragilidade e aceitando seu lugar subalterno dentro das relações de gênero, o que as coloca em uma situação de maior risco e vulnerabilidade. Por outro lado, o menino cresce com referências e pressões que o levam a mostrar sua masculinidade pela força e a violência, lhe sendo proibido qualquer sentimento de tristeza, medo ou insegurança, já que “homens não choram”. Por sua vez não podem demonstrar afetos pelas pessoas queridas, porque o mundo dos sentimentos é “exclusivamente feminino”. “Os estereótipos de gênero se fundamentam na misoginia, quer dizer na recusa do feminino que é associado à fragilidade/submissão e no enaltecer do masculino que é associado ao forte/violento”. (Zalaquett, 2005) É assim como se constroem e perpetuam a “menos valia” da mulher e a “superioridade” do homem.

Caminhos para erradicar a violência doméstica

A educação, o sistema de crenças e valores das mães, assim como suas capacidades de crítica e negociação, bem como as oportunidades de ter acesso a referencias que contribuam com novas possibilidades de ver e ver-se no mundo, fazem parte do capital humano que permitirá a manutenção ou o confronto de seu papel subordinado, a conseqüente formação de suas filhas e filhos e contribuirá para a possibilidade de construir – ou não – relações conjugais mais eqüitativas.
Mas não podemos imaginar que investir nas mulheres/mães seja uma solução completa. Longe disto, se por um lado são elas as principais responsáveis pela criação de suas filhas e filhos, o fato de “empodera-las” não será suficiente e mais, será um mecanismo que se por um lado “liberta” por outro reforça seu papel de única responsável pelo cuidado e educação de seus filhos e filhas.
Por outro lado, o que é dos homens? Vítimas do sistema que os coloca no lugar do poder, não podem sentir nem perder e para demonstrar superioridade sempre “poder” – ou podiam – fazer o uso da força. Mas a lógica da economia de mercado aonde a competitividade e a “necessidade” de grandes margens de lucro vem construindo uma relação selvagem e violenta entre as grandes corporações, os desejos de consumo, as poucas ofertas de emprego e a diminuição dos salários, é cada vez mais difícil cumprir com um dos principais papéis que lhes foi designado na cultura patriarcal: o de prover o lar. Além disso, a violência doméstica já não é algo “tão permitido ou natural” sendo proibida em alguns países que já contam com leis que a penalizam. Os meios de comunicação vivem transmitindo “formas de ser” homem – e mulher – que poucos podem chegar a alcançar. O domínio do mundo público não é mais prerrogativa masculina. Ainda longe de concretizar a desejada equidade, as mulheres cada vez mais ocupam os espaços de decisão e poder. Sem que lhes seja permitido sentir e expressar seus sentimentos, não é difícil encontrar homens que busquem no álcool e/ou droga uma forma de validação para expressar-se e relacionar-se de uma maneira diferente.
Existe uma tônica comum nas reclamações das mulheres que visitaram os CEM no Peru e os homens dos grupos visitados por Padilla no Chile e México: práticas de violência e afeto não são necessariamente antagônicas. É uma ilusão pensar que exista incompatibilidade entre violência e amor. É necessário que se deixe de lado o romantismo que constrói caminhos utópicos e impede que se enfrente a realidade: violência e amor poderem coexistir, talvez não por muito tempo, mas não é, de longe, uma convivência impossível. Compreendendo isto é mais fácil entender que muitas mulheres vítimas que acionam os serviços do Peru, assim como muitos dos homens agressores que participam dos grupos de ajuda, amem a seus companheiros e companheiras. O que não aceitam essas mulheres é continuar com a violência e o que lhes falta a estes homens é compreender que existem formas mais democráticas de relacionar-se como casal e que isto não os diminui como homens e mais, que os aproxima à suas famílias. Talvez, a partir de uma nova compreensão das masculinidades, discursos e práticas passem a ser mais coerentes e tanto a violência quanto o mal-estar que decorre dos atos violentos diminuam.
Utilizar um sistema exclusivamente punitivo – não que a punição quando justa não seja necessária e urgente – não garante uma transformação nas práticas abusivas e violentas, melhor, as incentiva e contribui, de certa forma, para manter ou esconder o problema.
Um homem comprovadamente violento e abusivo, além da punição de acordo com as regras e o sistema de justiça de cada país, deve ter ao seu alcance oportunidade de refletir sobre sua masculinidade, sobre sua posição e postura em relação a cada um dos membros de sua família e frente à sociedade da qual faz parte.
Desta forma poderemos oferecer oportunidades para que se tornem novos homens, novos modelos de pais e esposos e dar reais alternativas para que os casais possam continuar ou não com sua relação, agora a partir de uma perspectiva mais eqüitativa e pacífica.
E qual é o papel que cabe aos serviços de atenção às vitimas de violência doméstica? Garantir direitos, proteger e possibilitar o desenvolvimento de relações pessoais protetoras; escutar e aprender abrir-se para oferecer atenção ao agressor e, principalmente, lembrar constantemente que são serviços de defesa de direitos humanos e como tais não podem atuar como juizes ou algozes e que aqui também vale o princípio da congruência entre discurso e prática, em especial se o que se deseja como resultado são relações baseadas na paz e na equidade de gênero. Sucesso!

Bibliografia

Burin, Mabel y Meler, Irene. (2004) Varones. Género y subjetividad masculina . Paidós, Buenos Aires
Corsi, Jorge (comp.) (2006). Maltrato y abuso en el ámbito doméstico: fundamentos teóricos para el estudio de la violencia en las relaciones familiares. Paidós, Buenos Aires. 1ª ed. 2ª. reimp.
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Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (2006). Estado Mundial de la Infancia 2007.La mujer y la infancia. El doble dividendo de la igualdad de género. UNICEF, Nueva York
Houaiss. Dicionário de Português on-line – in: www.uol.com.br/biblioteca
Instituto Salvadoreño para el Desarrollo de la Mujer (2005). Estadísticas del programa de saneamiento de la relación familiar. El Salvador, ISDEMU
Martínez, José Ma. Avilés(2002). Bullying. Intimidación y Maltrato en el alumnado. STEEE – EILAS. In : http://www.xtec.es/~jcollell/Z8Links1.htm
Padilla, Miguel Ángel Ramos (2006). Masculinidades y violencia conyugal. Experiencias de vida de hombres de sectores populares de Lima y Cusco. FASPA/UPCH, Lima – Perú
Zalaquett, Mónica (2005). La urgente necesidad de democratizar las relaciones familiares. Trabajo presentado en el II Congreso Mundial sobre los derechos de las niñas, los niños y adolescentes. Lima, Perú.

Gabriela Schreiner - Março de 2007 – original apresentado na Pre-Jornada de Bioética y Salud de la Mujer – 07/03/2007 – UNIFE – Universidad Femenina del Perú – Lima/Perú. - tradução realizada pela autora a partir do original em espanhol.